Falando de Mercado: Insegurança jurídica afeta precificação de Cbio

A inadimplência crescente no cumprimento das metas do Renovabio tem pautado as conversas de participantes do mercado de Cbios, com o capítulo de judicialização contra o programa ofuscando os fundamentos e encolhendo a liquidez dos créditos de descarbonização.

Junte-se a Conrado Mazzoni, chefe adjunto de redação da Argus no Brasil, e Rebecca Gompertz, repórter do relatório Argus Brazil Gas Markets, e saiba mais sobre as perspectivas para o rumo do mercado de Cbios.

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Transcript

CM: Olá e bem-vindos ao ‘Falando de Mercado’ – uma série de podcasts trazidos semanalmente pela Argus sobre os principais acontecimentos com impacto para os setores de commodities e energia no Brasil e no mundo. Meu nome é Conrado Mazzoni, eu sou chefe adjunto de redação da Argus no Brasil. No episódio de hoje eu converso com Rebecca Gompertz, repórter da publicação Argus Gas Markets. Hoje falaremos sobre o momento de incertezas sobre o futuro dos créditos de descarbonização, os Cbios. Bem-vinda, Rebecca.

RG: Obrigada, Conrado. Conta comigo para falar de Cbios. A gente acompanha esse mercado de perto, produzindo um fechamento de preço diário e análises, publicados no relatório Argus Brasil Combustíveis, e, semanalmente, abordamos o tema em nossa cobertura de preço calculado de biometano no relatório Argus Gas Markets.

CM: Excelente, Rebecca. E queria justamente começar te ouvindo sobre como tem se comportado o preço dos Cbios neste ciclo de 2024. Como esperado, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, a ANP, atualizou as metas de descarbonização para dezembro, incluindo 7,6 milhões de Cbios não cumpridos em 2023, levando agora a meta de 2024 para 46,4 milhões de Cbios. Como isso tem impactado o mercado?

RG: Conrado, há semanas que o preço dos Cbios não tem evoluído muito atrelado aos fundamentos de mercado. De fato, restando agora sete meses para a entrega desta meta atualizada de Cbios, deveríamos estar observando um ritmo de compras de Cbios mais elevado do que estamos observando neste momento. E isso é um reflexo da insegurança jurídica que está travando a tomada de decisão neste mercado. Mas antes de prosseguir, Conrado, como a gente costumo fazer nesses encontros, vamos só explicar o que é o Cbio para situar quem não conhece ainda... O Cbio é um crédito de carbono do Brasil, cada 1 unidade de Cbio corresponde a 1 tonelada evitada de emissão de CO2. O Cbio surge com a Lei da Política Nacional de Biocombustíveis, o Renovabio, aprovada e ratificada em 2017, que tem como motivação o Acordo de Paris de 2015, no qual o Brasil se comprometeu em reduzir suas emissões de carbono. E como isso funciona, na prática... do lado comprador, você tem a chamada demanda obrigatória, que são as distribuidoras de combustíveis, obrigadas a comprar Cbios para compensar a emissão de gases do efeito estufa, conforme uma meta definida pelo Conselho Nacional de Política Energética, o CNPE. E do lado vendedor tem os produtores de biocombustíveis, como etanol, etanol de milho, biodiesel e biometano, que certificam suas usinas para ingressar no Programa Renovabio, e aí passam a emitir Cbios a partir da venda de biocombustíveis. Depois de vender o biocombustível e gerar o Cbio, a usina procura uma instituição financeira para escriturar esse crédito e aí transformá-lo em um ativo financeiro, negociado na Bolsa. A ideia central do programa é transferir recursos de quem consome combustível fóssil para quem produz biocombustíveis, e aí fomentar a produção de biocombustíveis. Bom, agora voltando para a pergunta, Conrado, o preço do Cbio caiu em maio para o menor nível desde o fim de 2022, na faixa de R$80, ou seja, um preço que não vimos no ano passado. A desvalorização vem ocorrendo desde o início deste ciclo de 2024, depois de o preço atingir R$101 no início de abril. Há uma somatória de fatores por trás dessa tendência. Do lado da oferta, a geração firme de Cbios desde o início do ano, acima de 3 milhões de Cbios por mês, em razão das vendas fortes de etanol devido à paridade favorável na bomba. E do lado da demanda, distribuidoras de pequeno e médio porte não estão ativas na ponta compradora, ponderando o que fazer diante de um quadro crescente de inadimplência no cumprimento das metas do Renovabio. Os níveis atuais até estão atrativos para compra, segundo participantes de mercado, mas o assunto do momento é o que vai acontecer com as distribuidoras inadimplentes no programa. Isso tem ofuscado os fundamentos de mercado.

CM: Realmente, né, Rebecca, vem ocorrendo um crescente aumento da inadimplência no Renovabio. No ciclo de 2023, foram 63 distribuidoras inadimplentes de um total de 145. São agora 36 distribuidoras que acumulam dois anos sem entregar Cbios. Isso tem afetado a credibilidade do programa, com distribuidoras que cumprem suas metas incomodadas com o fato de competirem no mercado de revenda de combustíveis contra concorrentes que não estão cumprindo metas. Bem, sabemos que a ANP iniciou processos administrativos de revogação de licença para operar contra 24 distribuidoras, que estavam reincidentes no descumprimento e sem pagar as multas previstas na Lei do Renovabio. Ou seja, estavam inscritas no Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público, o Cadin. O que apuramos é que essa é uma tramitação morosa e o regulador tem dito que está atuando aí dentro do limite nos termos da Lei para tentar punir as empresas inadimplentes.

RG: Conrado, a gente não consegue acessar todos os documentos desses processos, nem todos estão abertos, alguns correm em sigilo. Mas a gente tem apurado que as distribuidoras estão se defendendo desses processos de revogação de licença. Temos visto que empresas intimadas estão alegando que a medida coloca em risco a continuidade de atuação no mercado e que os processos violam princípios da "liberdade de atividade econômica". Além disso, há distribuidoras se manifestando no sentido de parcelar os débitos junto ao Cadin, a fim de evitar a perda de licença. É importante destacar, Conrado, que a inadimplência tem como pano de fundo um movimento de ações judiciais, com liminares obtidas por distribuidoras para não cumprirem as metas, de acordo com as informações que apuramos com fontes. Então, além da questão das multas, tem uma escalada de pressão contra o Renovabio que chegou ao Supremo Tribunal Federal. Essa judicialização ajuda a encolher a liquidez no mercado de Cbios.

CM: Pois é, Rebecca, a gente chegou a consultar o superintendente de Biocombustíveis e Qualidade de Produtos da ANP, o Sr. Carlos Orlando Enrique da Silva, a respeito dessa escalada de pressão, e ele nos respondeu que tem visto esse movimento com naturalidade. Na visão dele, isso se insere no direito legal de discordar da política pública. Então existe uma visão construtiva de consolidação e fortalecimento do Renovabio após esse capítulo da judicialização. Eu entendo que há uma situação temerária com esse acúmulo de Cbios faltantes, que vão sendo empurrados para metas futuras e que algumas das nossas fontes do lado distribuidor veem como quase impagáveis para distribuidoras. A gente até chegou a comentar, né, Becca, se não vai ser o caso de se criar uma espécie de “Refis” de parcelamento de entrega de Cbios faltantes. Pelo que sabemos até o momento, o marco legal do Renovabio não prevê o parcelamento nem aposentadoria de Cbios fora dos prazos estabelecidos em resoluções do CNPE. O parcelamento somente é aplicável ao pagamento de multas aplicadas. RG: Pensando na meta de 2024 até o fim do ano, uma variável difícil de calcular e que fará toda a diferença na conta final será o nível de inadimplência. Se o pessoal entregar os 7,6 milhões de Cbios não cumpridos, a meta de 46,4 milhões de Cbios vai deixar o estoque final apertado. Mas se o nível de inadimplência se mantiver, vai sobrar muito Cbio e o preço tende a cair mais. Conta a favor dessa tendência o salto de geração de créditos, que acaba favorecendo apostas de menor aperto no cumprimento das metas. A emissão de novos Cbios atingiu 3,5 milhões de créditos em abril, um salto de 58pc na comparação com igual período em 2023. No acumulado dos quatro primeiros meses do ano, a emissão chega a 13,9 milhões de Cbios, em comparação com 8,5 milhões de Cbios no mesmo intervalo em 2023. Mas a insegurança jurídica afeta a precificação dos Cbios e o planejamento de investimentos em alguns setores, como o biometano. O Renovabio é uma receita das produtoras de biometano para a expansão e manutenção das plantas. Um produtor de biometano autorizado pela ANP e certificado dentro do Renovabio me disse dias atrás que a manutenção do Renovabio garante segurança jurídica para o setor. Eles estão aumentando a eficiência da usina para produzir mais biometano e, assim, contribuir para a transição energética.

CM: Rebecca, sem querer abusar muito da bola de cristal, o que me parece é que uma decisão de mérito a favor ou contra o Renovabio no Supremo Tribunal Federal deve ser o divisor de águas para encerrar o capítulo de judicialização. No caso de uma decisão favorável, uma batida de martelo do STF daria mais estabilidade ao programa, que é o que argumentam os peritos em mercados de carbono. Por outro lado, uma vitória dos detratores do Renovabio colocaria o programa de descarbonização em xeque. E no meio dessa tramitação jurídica, o mercado deve ficar de olho se pode evoluir alguma agenda de aperfeiçoamento ou ajustes do Renovabio no Congresso ou a partir do próprio Ministério de Minas e Energia.

RG: No fim de abril, o PDT pediu desistência da Ação Direta de Inconstitucionalidade que contesta regras do Renovabio no Supremo, alegando "discordâncias intrapartidárias". Mas resta ainda a ação movida pelo PRD, sob a relatoria do ministro Nunes Marques. Há pontos de questionamentos em comum das liminares obtidas por distribuidoras e dessa ação judicial contra o programa no Supremo. Os processos judiciais contra o Renovabio alegam que há uma onerosidade excessiva ao distribuidor, como único elo obrigado a neutralizar emissões de toda a cadeia, e que não há comprovação de que o recurso recebido com o Cbio está sendo investido em expansão de produção de biocombustível. Em petição de defesa do Renovabio, o Ministério de Minas e Energia destacou que uma declaração de inconstitucionalidade do programa tende a comprometer esforços de metas setoriais para a redução de emissões de gases associados ao efeito estufa. Na visão da pasta, se a tese de ônus excessivo às distribuidoras prosperar, o Brasil dificilmente vai conseguir implementar metas de redução de emissões para algum setor no futuro. As empresas vão poder recorrer ao Poder Judiciário para não cumprir com obrigações da política pública. Além disso, tem a questão de que o Renovabio é uma medida concreta do governo brasileiro para cumprir o Acordo de Paris, então haveria um revés nesse compromisso internacional. Enfim, seguiremos ligados aqui em como vão se desenrolar os próximos capítulos no mercado de Cbios.

CM: Com certeza, então fique ligado e acompanhe nosso conteúdo. Em breve estaremos aqui novamente falando mais de Cbios. Rebecca, muito obrigado pela sua participação. Esse e os demais episódios do nosso podcast em português estão disponíveis no site da Argus em www.argusmedia.com/falando-de-mercado.

Visite a página para seguir acompanhando os acontecimentos que pautam os mercados globais de commodities e entender seus desdobramentos no Brasil e na América Latina. Voltaremos em breve com mais uma edição do “Falando de Mercado”. Até logo!